A história de amor entre um muçulmano e uma judia durante resgate de pessoas das mãos do Talebã
Últimas atualizações em 01/11/2025 – 11:35 Por G1 Mundo
O amor de Sammi Cannold e Safi Rauf resistiu ao período em que ele esteve sob o cativeiro do Talebã
Sammi Cannold
Quando Cabul, capital do Afeganistão, caiu nas mãos do Talebã, em agosto de 2021, o mundo viu imagens caóticas de afegãos se espremendo no aeroporto, desesperados para fugir.
Em Washington, capital dos Estados Unidos, o ex-médico da Marinha Safi Rauf iniciava discretamente sua própria missão: ajudar amigos e colegas presos no Afeganistão.
Ele não imaginava que, enquanto salvava vidas, encontraria o amor, e que, sendo muçulmano, se apaixonaria por uma mulher judia, superando barreiras religiosas e culturais.
“Com hesitação, comecei ajudando uma pessoa. Deu certo. Depois outra, e mais outra. De repente, aquilo virou uma grande operação, com centenas de pessoas em campo no Afeganistão e dezenas de nós em Washington”, lembra Rauf.
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Rauf, que nasceu em um campo de refugiados e imigrou para os EUA na adolescência, acabou envolvido em uma frenética operação de resgate.
Foi nesse contexto que conheceu Sammi Cannold, diretora de teatro em Nova York, que tentava tirar de Cabul a família de um amigo.
“Eu não tinha nenhum contato que pudesse ajudar. Vi um programa especial na TV sobre o grupo de Rauf e escrevi para ele. Ele respondeu que o melhor seria eu ir a Washington e trabalhar como voluntária com a equipe”, conta Cannold.
Ela fez as malas, pegou um trem para Washington, a capital americana, e entrou num centro de operações lotado de veteranos de guerra. “Venho do teatro. Foi um choque cultural enorme”, lembra, rindo.
Cannold não sabia nada sobre o Afeganistão, mas logo se mostrou essencial. “Estava acostumada a lidar com planilhas e comunicação. Acabei virando responsável pelas comunicações. Quem diria?”, diz.
Eles trocaram votos em uma cerimônia que celebrou suas culturas e religiões
Sammi Cannold
Centelhas no meio do caos
Durante o cativeiro de Rauf, os dois mantiveram a esperança por meio de ligações secretas, sussurradas
Sammi Cannold
Entre a tensão e o trabalho intenso, algo começou a surgir.
“Houve atração? Acho que sim”, admite Cannold. Ela chegou a buscar no Google a idade de Rauf “para ter certeza de que era jovem o suficiente para sair com ele”.
O primeiro passeio longo dos dois foi às 3h, durante uma noite de espera angustiada pelos evacuados que tentavam cruzar postos talebãs. Caminharam por Washington até o Memorial Lincoln.
“Parecia cena de filme. Pensei: vou me casar com esse homem?”, conta ela.
O primeiro beijo veio depois, na sacada do centro de operações. Nervoso, Rauf falou sobre carros. Mas o vínculo cresceu rapidamente, mesmo com as diferenças culturais.
“Cannold perguntava se eu a apresentaria à minha família, e eu dizia que era impossível”, lembra ele.
A família muçulmana de Rauf esperava que ele se casasse com uma mulher afegã, em um casamento arranjado. E Cannold era judia.
Mesmo assim, seguiram juntos. Uma prova veio quando Cannold o levou ao teatro para assistir ao musical Os Miseráveis.
“Para resumir: Rauf enlouqueceu. Ficou completamente fascinado, especialmente com Os Miseráveis. Foi a resposta que sonhava”, diz ela.
“Cresci lutando para sobreviver e me identifiquei muito com Marius, o protagonista — um rebelde e um amante”, conta Rauf.
Cativeiro
Em dezembro de 2021, Rauf voltou a Cabul para missões humanitárias com o irmão. Mesmo avisado dos riscos, acreditava na promessa de anistia e proteção feita pelo Talebã.
No último dia de viagem, porém, ele, o irmão e outros cinco estrangeiros foram presos pelos serviços de inteligência ligados ao Talebã.
Nos primeiros dias, Rauf ficou sozinho em uma cela gelada, subterrânea, de dois metros por dois.
“O lugar tinha dois metros quadrados. Não havia janela nem cama”, lembra.
Quando soube da prisão, Cannold entrou em pânico em Nova York. Checou a localização dele no Google Maps e viu o marcador sobre a sede da inteligência do Talebã.
“Não conhecia bem Cabul, mas sabia que aquilo era ruim”, diz.
Durante semanas, não teve notícias. Até que Rauf fez amizade com um guarda descontente, que lhe contou precisar de dinheiro para o casamento. Rauf conseguiu que um primo lhe enviasse dinheiro e um celular.
Do porão, de pé sobre os ombros do irmão para pegar sinal, mandou uma mensagem: “Oi, como você está? Te amo.”
“A primeira ligação veio 17 dias depois. Só saber que ele estava vivo já era tudo”, lembra Cannold.
Durante os 105 dias de cativeiro, Rauf se apegou às lembranças de Os Miseráveis.
“Nos primeiros 70 dias, não vi o sol. Ficávamos no porão. Comecei a cantar baixinho Do You Hear the People Sing? (Você ouve o povo cantar?). Virou minha canção de resistência.”
As ligações secretas com Cannold continuaram. “Eu sussurrava para que os guardas não me ouvissem e ficava debaixo de um cobertor”, diz.
“Além disso, meu irmão estava a meio metro de distância. Às vezes tentava ter conversas muito românticas por telefone com Cannold, mas… era demais.”
Conhecer os pais
As negociações com o Talebã se prolongaram, mas, após 70 dias, foi firmado um acordo para libertar Rauf.
Sammi Cannold conta que, em determinado momento, o grupo ameaçou executá-lo caso os Estados Unidos não agissem.
“Decidiu-se que os pais de Rauf e eu deveríamos ir ao Catar, onde ocorria grande parte das negociações, para ajudar a acelerar o processo”, relata.
Cannold voou para o Catar, onde ocorriam as negociações, e lá conheceu os pais de Safi pela primeira vez.
“Os pais dele não sabiam que eu existia. De repente, estávamos morando juntos por duas semanas”, diz.
Como eles não falavam inglês com fluência, Cannold virou uma espécie de porta-voz da família. Para os conservadores pais afegãos, descobrir que o filho tinha uma namorada judia foi um choque, mas a crise os levou à aceitação.
“Dou todo o crédito a eles. Foram extraordinários comigo”, afirma Cannold.
Depois de 105 dias preso, Rauf foi libertado e deixou o Afeganistão para se reunir com ela.
Uma vida juntos
Nos EUA, os dois passaram a viver juntos e se casaram pouco depois.
A cerimônia misturou tradições afegãs, judaicas e teatrais: convidados usaram trajes afegãos, cantaram músicas judaicas e Rauf dançou com os amigos o número das garrafas de O Violinista no Telhado.
Em um gesto comovente, Cannold leu no casamento trechos do diário que escreveu durante o cativeiro.
Um deles, do dia 32:
“Sonho com o dia em que vou reler isto sentada ao seu lado, em uma varanda. Por favor, por favor, volte.”
Rauf nunca tinha lido o diário. “Era doloroso demais. Mas, no casamento, lemos juntos”, diz.
O anel de noivado carrega um fragmento da fechadura da cela onde ficou preso. “Essa experiência lançou as bases da nossa vida”, afirma.
Lições de amor
O casal diz que a tragédia transformou a relação. “Discutimos menos do que qualquer casal que conheço. Quando quase se perde alguém, as pequenas coisas deixam de importar”, reflete Cannold.
“Seja o que for que a vida nos traga, nunca será tão difícil quanto o que vivemos”, diz Rauf. “Estar aqui, inteiros e ainda apaixonados, é um milagre.”
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