O Perdão como Libertação

Um Tratado sobre a solidão Parte 3

Últimas atualizações em 02/07/2025 – 08:13 Por Redação GNI

O abandono por parte de amigos configura-se como uma das experiências mais dolorosas na trajetória humana, deixando cicatrizes profundas no tecido psíquico e questionando as bases fundamentais da confiança interpessoal. Contudo, é precisamente neste contexto de ferida narcísica e ruptura vincular que emerge a necessidade imperativa do perdão, não como um ato de benevolência direcionado ao outro, mas como um movimento de libertação interior que visa à restauração da nossa própria integridade psíquica.

Sob a perspectiva psicanalítica, o abandono pelos amigos reatualiza traumas primitivos relacionados às primeiras experiências de separação e perda. Freud, em sua elaboração sobre o complexo de Édipo e as vicissitudes das relações objetais, demonstrou como as experiências de abandono reativam ansiedades arcaicas ligadas ao desamparo fundamental (Hilflosigkeit) que caracteriza a condição humana desde os primórdios da existência.

O psicanalista Melanie Klein, ao desenvolver sua teoria das relações objetais, esclareceu como o abandono desencadeia mecanismos defensivos primitivos, particularmente a identificação projetiva e a clivagem do objeto. O amigo que abandona torna-se o depositário de todos os aspectos persecutórios internalizados, sendo investido como objeto mau que deve ser expulso da psique para preservar a homeostase emocional.


A manutenção do ressentimento frente ao abandono constitui, paradoxalmente, uma forma de perpetuar o vínculo com aquele que nos feriu.


Como observou Nietzsche em sua genealogia da moral, o ressentimento representa uma modalidade reativa de existência, na qual o sujeito permanece psiquicamente atrelado ao objeto de sua mágoa, impedindo-se de investir libidinalmente em novos objetos e experiências.

Carl Jung, em suas reflexões sobre a individuação, apontou como a fixação em complexos autônomos – dentre os quais se incluem os complexos de abandono e traição – impede o desenvolvimento da personalidade e a realização do Self. O ressentimento cristaliza energia psíquica em torno de conteúdos negativos, empobrecendo o repertório emocional e limitando as possibilidades de crescimento pessoal.


O perdão, compreendido em sua dimensão psicológica mais profunda, não constitui um simples esquecimento ou minimização da ofensa sofrida, mas sim um complexo processo de elaboração psíquica que envolve a integração de aspectos cindidos da experiência emocional.


Segundo Donald Winnicott, o perdão autêntico pressupõe a capacidade de sustentar a ambivalência, reconhecendo simultaneamente os aspectos bons e maus do objeto, sem necessidade de clivagem defensiva.

Este processo elaborativo permite a transformação da posição esquizo-paranoide, caracterizada pela clivagem e pela persecutoriedade, em direção à posição depressiva, na qual o sujeito pode reconhecer sua própria participação na dinâmica relacional e assumir responsabilidade por seus aspectos destrutivos. O perdão emerge, assim, como consequência natural da integração psíquica e da maturação emocional.


A neurociência contemporânea tem demonstrado os efeitos benéficos do perdão sobre o funcionamento cerebral e a saúde mental.


Estudos de neuroimagem revelam que o perdão está associado à redução da atividade em áreas cerebrais relacionadas ao estresse e à ativação do sistema parassimpático, promovendo estados de relaxamento e bem-estar.

A psicologia positiva, através dos trabalhos de Martin Seligman e seus colaboradores, tem evidenciado como o perdão constitui uma das virtudes fundamentais para o florescimento humano (eudaimonia), contribuindo significativamente para a felicidade autêntica e o bem-estar psicológico. O perdão libera recursos cognitivos e emocionais antes investidos na manutenção do ressentimento, permitindo sua canalização para atividades criativas e construtivas.

Sob uma perspectiva existencial-fenomenológica, o perdão representa um ato de transcendência que permite ao sujeito superar a factualidade traumática do abandono e projetar-se em direção a possibilidades futuras de relacionamento e crescimento pessoal. Como observou Viktor Frankl, a capacidade de perdoar constitui uma manifestação da liberdade fundamental do ser humano de escolher sua atitude frente às circunstâncias adversas.


O perdão revela-se, assim, como um movimento de afirmação da própria dignidade e autonomia, através do qual o sujeito recusa-se a permanecer prisioneiro das ações alheias e reafirma sua capacidade de autodeterminação. É um ato de coragem existencial que pressupõe a aceitação da finitude e imperfeição humanas, tanto próprias quanto alheias.


O processo de perdoar aqueles que nos abandonaram não implica na negação da dor sofrida, mas em sua transformação alquímica em sabedoria e compaixão. Esta metamorfose psíquica permite que a experiência traumática seja ressignificada como oportunidade de crescimento e aprofundamento da compreensão sobre a condição humana.

A psicanálise winnicottiana nos ensina que é através do processamento adequado das experiências de desilusão e frustração que desenvolvemos nossa capacidade de empatia e nossa tolerância às imperfeições humanas. O abandono pelos amigos, quando adequadamente elaborado através do perdão, pode tornar-se fonte de maior maturidade emocional e discernimento nas relações interpessoais futuras.


O perdão aos amigos que nos abandonaram emerge não como obrigação moral ou social, mas como necessidade psíquica fundamental para a preservação da saúde mental e o desenvolvimento da personalidade. Constitui um ato de libertação interior que permite a superação da posição de vítima e a reassunção do protagonismo existencial.


Através do perdão, o sujeito liberta-se das cadeias invisíveis do ressentimento e reconquista sua capacidade de amar e confiar, ainda que de forma mais madura e discernente. É um processo que exige tempo, coragem e, frequentemente, apoio psicoterapêutico, mas que oferece como recompensa a restauração da integridade psíquica e a possibilidade de relacionamentos mais autênticos e profundos.

O perdão revela-se, assim, como um dos mais elevados atos de amor-próprio, através do qual honramos nossa própria dignidade e reafirmamos nossa fé na possibilidade de transformação e crescimento humano, mesmo diante das mais dolorosas desilusões relacionais.

Léo Vilhena


Um tratado sobre a solidão – Parte 1
Um tratado sobre a solidão – Parte 2
Um tratado sobre a solidão – Parte 3

Léo Vilhena

Editor-Chefe e Jornalista da Rede GNI | Twitter  (X) @LeoVilhenaReal

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