Um Ensaio Psicológico sobre a impossibilidade de crer no outro após uma traição
Um tratado sobre a solidão - Parte 2
Últimas atualizações em 01/07/2025 – 08:51 Por Redação GNI
A confiança, em sua essência mais pura, é um salto no escuro. Trata-se de uma entrega que, embora consciente dos riscos, escolhe crer na integridade do outro, com a base e a régua na sua próprio caráter e integridade.
Mas, nem sempre é assim.
Entretanto, quando o sujeito vivencia sucessivas experiências de traição, das mais variadas formas, esse salto se transforma em queda — uma queda longa, silenciosa e corrosiva, cujo impacto reverbera não apenas nas relações futuras, mas também no âmago da constituição psíquica do ser.
A dificuldade em confiar nas pessoas, quando enraizada em experiências reiteradas de deslealdade, não é um simples traço de personalidade, tampouco uma predisposição à reserva emocional. Trata-se de uma ferida narcísica, como diria Freud, que toca o cerne do Eu, desorganizando as instâncias que sustentam a relação entre o sujeito e o mundo.
A traição não fere apenas o vínculo externo, mas implode estruturas internas de pertencimento, valor e segurança. Ela age como uma violência simbólica, rasgando os tecidos da psique e instaurando, muitas vezes, um estado de desamparo.
Na visão freudiana, o trauma — e a traição pode ser compreendida como tal — não se fixa apenas no evento em si, mas na incapacidade do aparelho psíquico de elaborá-lo. O que não pôde ser simbolizado retorna como sintoma: desconfiança crônica, isolamento, hiper vigilância, incapacidade de formar novos vínculos. Lacan, por sua vez, afirma que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, e nesse sentido, a repetição das traições imprime significantes de dor no campo do Outro, de forma que o sujeito passa a ler todo gesto, toda aproximação, sob o signo da ameaça.
A confiança é, também, uma função do desejo. Desejar confiar é desejar ser acolhido no Outro, reconhecer-se em sua alteridade, e ser por ele reconhecido.
Mas aquele que foi traído reiteradamente vê seu desejo capturado pelo medo — medo de reviver o abismo da frustração, medo de se ver, mais uma vez, esquecido, substituído, desmentido.
A angústia e o medo de reviver essa fratura na alma, então, passa a reger o vínculo com o mundo. O sujeito fecha-se sobre si mesmo e constrói muros, que não são de proteção, mas de contenção da dor.
Winnicott, ao falar sobre o verdadeiro e o falso self, nos oferece uma chave valiosa. O indivíduo ferido pela traição pode desenvolver um falso self relacional: um modo de estar com o outro sem, de fato, se entregar. Sorri, interage, aparenta envolvimento — mas permanece internamente suspenso, como alguém que habita o convívio social de forma performática, sem jamais permitir que o outro o toque verdadeiramente. É uma presença que, embora física, é ontologicamente ausente. Antagônico? Mas, real.
O trauma da traição, muitas vezes, remete a feridas ainda mais primitivas, inscritas nas primeiras relações objetais. Melanie Klein já alertava para a importância do estágio esquizoparanóide, no qual o sujeito, temendo ser destruído pelo objeto, o cinde entre bom e mau, amável e ameaçador. O adulto traído retorna inconscientemente a esse estágio, projetando no outro — ainda que este seja novo — os conteúdos do passado não elaborado. O mundo torna-se hostil. O outro, imprevisível. O amor, um campo minado.
Preste bastante atenção no que vou lhe dizer: a dificuldade em confiar em outra pessoa, não é um defeito. É um sintoma.
Um sintoma legítimo, denso, que carrega a memória do sofrimento e denuncia a ausência de um espaço seguro. É, paradoxalmente, um pedido de cuidado e socorro. Mas, na maioria das vezes, esse pedido não se traduz em palavras, e sim em comportamentos de retração, evitamento, ou mesmo agressividade passiva.
Resta, então, o desafio: como reconstituir a possibilidade de confiar? Como costurar, fio a fio, os retalhos de uma confiança devastada?
A psicanálise não oferece respostas fáceis, quiçá, existem respostas.
Mas propõe escuta, tempo e simbolização. Confiar novamente é um processo que exige a reescrita do enredo interno, a ressignificação do papel do outro e, sobretudo, a reintegração do Eu dilacerado. Não se trata de esquecer a dor — isso seria negação —, mas de dar-lhe lugar na história, para que não precise mais gritar por meio do sintoma.
Ser capaz de confiar, após ter sido traído, não é ingenuidade. É transgressão. É romper com o ciclo de repetição que o inconsciente impõe. É um ato radical de liberdade subjetiva.
Como escreveu Rollo May: “A liberdade é a capacidade de se plasmar como ser, à medida que se assume a responsabilidade de ser”.
Confiar novamente, portanto, é um gesto existencial. É assumir a responsabilidade — com coragem — de, mesmo ferido, não abrir mão do encontro com o outro.
Léo Vilhena
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